Machado de Assis, conhecido também como o “Bruxo do Cosme Velho”, nasceu no Rio de Janeiro em junho de 1839, e faleceu em sua cidade natal em setembro de 1908, aos 69 anos.

Conhecido principalmente pelas suas obras em prosa, Machado de Assis escreveu também poesias e crônicas. Para comemorar o mês de aniversário desse importante escritor brasileiro, apresentamos a crônica Regra para o uso dos bondes, escrita pelo autor e publicada originalmente na Gazeta de Notícias, em julho de 1883.

Boa leitura!

REGRA PARA O USO DOS BONDES, por Machado de Assis

Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que frequentam bondes. O desenvolvimento que tem tido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

ART. I Dos encatarroados

Os encatarroados podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.

ART. II Da posição das pernas

As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.

ART. III Da leitura dos jornais

Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.

ART. IV Dos quebra-queixos

É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: — a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.

ART. V Dos amoladores

Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

ART. VI Dos perdigotos

Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.

ART. VII Das conversas

Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

ART. VIII Das pessoas com morrinha

As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

ART. IX Da passagem às senhoras

Quando alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.

ART. X Do pagamento

Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.

O Rio de Janeiro foi a primeira cidade da América do Sul a inaugurar uma linha de transporte sobre trilhos. As linhas de bondes foram canceladas entre 1965 e 1968, cem anos após a inauguração da primeira linha começar a operar na cidade. Imagem: Divulgação Light.

PARA SABER MAIS

O alienista, O espelho, O caso da vara e Missa do Galo são alguns dos contos selecionados por John Gledson nessa edição da Companhia das Letras. Leitura indispensável para estudantes e apreciadores de literatura brasileira, 50 contos de Machado de Assis reúne os principais contos escritos pelo Bruxo do Cosme Velho.


Diferente do consagrado escritor crítico e sarcástico, Crisálidas apresenta ao leitor o lado poeta de Machado de Assis. Publicado em 1864, Crisálidas aborda temas próprios do romantismo como o subjetivismo, a idealização da mulher e o eu lírico romântico.


Com grande dose de ironia, Brás Cubas relembra de seus vários amores, de amigos como Quincas Borba, de sua infame formação acadêmica em Portugal e de sua vida cheia de privilégios. Nesta edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas você encontra o texto integral acompanhado de explicações e ilustrações que o ajudarão a compreender melhor esse romance de Machado de Assis.


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REFERÊNCIA

CURADORIA. Regra para o uso dos bondes – por Machado de Assis. Acesso em: janeiro de 2020.

O GLOBO RIO. Os bondes no Rio antigo. Acesso em: janeiro de 2020.

Gosta de ler os textos escritos pelo Bruxo do Cosme Velho? Então confere também Um Apólogo, por Machado de Assis.

Um comentário em “REGRA PARA USO DOS BONDES: UMA CRÔNICA BEM-HUMORADA DE MACHADO DE ASSIS

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