Machado de Assis, conhecido também como o “Bruxo do Cosme Velho”, nasceu no Rio de Janeiro em junho de 1839, e faleceu em sua cidade natal em setembro de 1908, aos 69 anos.
Conhecido principalmente pelas suas obras em prosa, Machado de Assis escreveu também poesias e crônicas. Para comemorar o mês de aniversário desse importante escritor brasileiro, apresentamos a crônica A Reforma pelo jornal, publicada originalmente em O Espelho, em outubro de 1859.
Boa leitura!
A REFORMA PELO JORNAL, por Machado de Assis
Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias, mais do que os movimentos populares; foi o jornal. Devia ser curioso vê-las quando um século despertou ao clarão deste fiat humano; era a cúpula de seu edifício que se desmoronava.
Com o jornal eram incompatíveis esses parasitas da humanidade, essas fofas individualidades de pergaminho alçado e leitos de brasões. O jornal que tende à unidade humana, ao abraço comum, não era um inimigo vulgar, era uma barreira… de papel, não, mas de inteligências, de aspirações.
É fácil prever um resultado favorável ao pensamento democrático. A imprensa, que encarnava a ideia no livro, expendi eu em outra parte, sentia-se ainda assim presa por um obstáculo qualquer; sentia-se cerrada naquela esfera larga mas ainda não infinita; abriu pois uma represa que a impedia, e lançou-se uma noite aquele oceano ao novo leito aberto: o pergaminho será a Atlântida submergida.
Por que não?
Todas as coisas estão em gérmen na palavra, diz um poeta oriental. Não é assim? O verbo é a origem de todas as reformas.
Os hebreus, narrando a lenda do Gênesis, dão à criação da luz a precedência da palavra de Deus. É palpitante o símbolo. O fiat repetiu-se em todos caos, e, coisa admirável! sempre nasceu dele alguma luz.
A história é a crônica da palavra. Moisés, no deserto; Demóstenes, nas guerras helênicas; Cristo, nas sinagogas da Galiléia; Huss, no púlpito cristão; Mirabeau, na tribuna republicana; todas essas bocas eloquentes, todas essas cabeças salientes do passado, não são senão o fiat multiplicado levantado em todas as confusões da humanidade. A história não é um simples quadro de acontecimentos; é mais, é o verbo feito livro.
Ora pois, a palavra, esse dom divino que fez do homem simples matéria organizada, um ente superior na criação, a palavra foi sempre uma reforma. Falada na tribuna é prodigiosa, é criadora, mas é o monólogo; escrita no livro, é ainda criadora, é ainda prodigiosa, mas é ainda o monólogo; esculpida no jornal, é prodigiosa e criadora, mas não é o monólogo, é a discussão.
E o que é a discussão?
A sentença de morte de todo o status quo, de todos os falsos princípios dominantes. Desde que uma coisa é trazida à discussão, não tem legitimidade evidente, e nesse caso o choque da argumentação é uma probabilidade de queda.
Ora, a discussão, que é a feição mais especial, o cunho mais vivo do jornal, é o que não convém exatamente à organização desigual e sinuosa da sociedade.
Examinemos.
A primeira propriedade do jornal é a reprodução amiudada, é o derramamento fácil em todos os membros do corpo social. Assim, o operário que se retira ao lar, fatigado pelo labor quotidiano, vai lá encontrar ao lado do pão do corpo, aquele pão do espírito, hóstia social da comunhão pública. A propaganda assim é fácil; a discussão do jornal reproduz-se também naquele espírito rude, com a diferença que vai lá achar o terreno preparado. A alma torturada da individualidade ínfima recebe, aceita, absorve sem labor, sem obstáculo aquelas impressões, aquela argumentação de princípios, aquela arguição de fatos. Depois uma reflexão, depois um braço que se ergue, um palácio que se invade, um sistema que cai, um princípio que se levanta, uma reforma que se coroa.
Malévola faculdade — a palavra!
Será ou não o escolho das aristocracias modernas, este novo molde do pensamento e do verbo?
Eu o creio de coração. Graças a Deus, se há alguma coisa a esperar é a das inteligências proletárias, das classes ínfimas; das superiores, não.
As aristocracias dissolvem-se, diz um eloquente irmão d’armas. É a verdade. A ação democrática parece reagir sobre as castas que se levantam no primeiro plano social. Os próprios brasões já se humanizam mais, e alguns jogam na praça sem notarem que começam a confundir-se com as casacas do agiota.
Causa riso.
Tremem, pois, tremem com este invento que parece abranger os séculos — e rasgar desde já um horizonte largo às aspirações cívicas, às inteligências populares.
E se quisessem suprimi-lo? Não seria mau para eles; o fechamento da imprensa, e a supressão da sua liberdade, é a base atual do primeiro trono da Europa.
Mas como! cortar as asas de águia que se lança no infinito, seria uma tarefa absurda, e, desculpem a expressão, um cometimento parvo. Os pergaminhos já não são asas de Ícaro. Mudaram as cenas; o talento tem asas próprias para voar; senso bastante para aquilatar as culpas aristocráticas e as probidades cívicas.
Procedem estas idéias entre nós? Parece que sim. É verdade que o jornal aqui não está à altura da sua missão; pesa-lhe ainda o último elo. Às vezes leva a exigência até à letra maiúscula de um título de fidalgo.
Cortesania fina, em abono da verdade!
Mas, não importa! eu não creio no destino individual, mas aceito o destino coletivo da humanidade. Há um pólo atraente e fases a atravessar. — Cumpre vencer o caminho a todo o custo; no fim há sempre uma tenda para descansar, e uma relva para dormir.

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)
PARA SABER MAIS

O alienista, O espelho, O caso da vara e Missa do Galo são alguns dos contos selecionados por John Gledson nessa edição da Companhia das Letras. Leitura indispensável para estudantes e apreciadores de literatura brasileira, 50 contos de Machado de Assis reúne os principais contos escritos pelo Bruxo do Cosme Velho.
Diferente do consagrado escritor crítico e sarcástico, Crisálidas apresenta ao leitor o lado poeta de Machado de Assis. Publicado em 1864, Crisálidas aborda temas próprios do romantismo como o subjetivismo, a idealização da mulher e o eu lírico romântico.


Com grande dose de ironia, Brás Cubas relembra de seus vários amores, de amigos como Quincas Borba, de sua infame formação acadêmica em Portugal e de sua vida cheia de privilégios. Nesta edição de Memórias Póstumas de Brás Cubas você encontra o texto integral acompanhado de explicações e ilustrações que o ajudarão a compreender melhor esse romance de Machado de Assis.
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REFERÊNCIA
ASSIS, M. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994. Disponível em: http://machado.mec.gov.br/index.php Acesso em: 17 nov. 2020.
Quer ler outra crônica escrita pelo Bruxo do Cosme Velho? Então leia também Regra para uso dos bondes: uma crônica bem-humorada de Machado de Assis.